O primeiro colóquio do ciclo “O que é ser angolano/angolana? Mentalidade e aparência” realiza-se, hoje, no Memorial António Agostinho Neto (MAAN), em Luanda, com a finalidade de reunir contributos de reflexão para resolver as tensões e contradições referentes às memórias colectivas marcantes da história de Angola.
O colóquio, uma iniciativa do Centro de Estudos para a Boa Governação (UFOLO), vai desenvolver uma série de ciclo de debates nacionais sobre “O que é ser angolano/angolana? Mentalidade e aparências”, com o objectivo de repensar o conceito de angolanidade em toda a sua dimensão histórica, económica, antropológica, sociológica e política.
Segundo uma nota da organização, o grande objectivo do colóquio inaugural é abrandar o impacto das tensões e construir uma identidade assente na afirmação ou na reinvenção do mosaico cultural e etnolinguístico da população angolana.
A actividade tem como moderadora a escritora Domingas Monte e o painel vai ser constituído por quatro palestrantes, a destacar Fidel Reis, historiador, que apresentará uma comunicação intitulada “A Gloriosa Memória”, uma reflexão em torno do lugar que, nos dias de hoje, a catana ocupa na memória da luta armada, tendo como referencial teórico o conceito de lugar de memória.
O sociólogo João Baptista Lukombo vai abordar a questão crucial da “Estabilidade, segurança e desenvolvimento”, para aferir como os angolanos podem promover a cultura da participação inclusiva e a tolerância, servindo os desígnios da estabilidade e segurança em prol do desenvolvimento “humano” e “sustentável”, promovendo a “cidadania”.
Carlos Mariano, médico patologista, nas vestes de historiador, vai falar sobre “As identidades da nacionalidade, supra e infra-nacionais em Angola: um contributo para a sua abordagem, sobretudo histórica”, enquanto o escritor José Luís Mendonça, tocará no problema sensível da identidade sob o tema “Ser angolano: uma ficção da língua portuguesa”.
De acordo com o comunicado, nos próximos meses, o Centro UFOLO vai trabalhar para reunir os intelectuais angolanos em torno de outros painéis do ciclo de debates, como “Direito e justiça, imagens e realidades na organização do Estado”, “Conceitos de tradição e modernidade, suas práticas na sociedade”, “Representação do patriotismo e cidadania em Angola” e “Modelos de representação social, política e religiosa”.
Em Setembro de 2009, o então ministro da Educação de Angola, Burity da Silva, afirmou que “a construção da angolanidade deve ser edificada com a participação de todas as culturas existentes, sem critérios estereotipados de exclusão”. Prova dessa tese, segundo o regime, continua a ser a comemoração do Dia do Herói Nacional em homenagem, pois claro, a António Agostinho Neto.
Mas é assim. Se o MPLA é Angola e Angola é do MPLA, herói nacional há só um, Agostinho Neto e mais nenhum. O lugar está hoje, embora de forma mais subtil, ocupado por João Lourenço. Quando o MPLA for apenas um dos partidos do país e Angola for um verdadeiro Estado de Direito, então haverá outros heróis. Isto porque, pensa o comum dos mortais, nenhum partido tem a exclusividade dos heróis. Ou será que tem? Tem o MPLA. Desde logo porque angolanos propriamente ditos só existem neste partido.
Há quem diga, embora sem a aprovação do MPLA, que Angolanidade significa “qualidade própria do que é angolano; carácter específico da cultura ou da história de Angola; sentimento de amor ou de grande afeição por Angola”. Reconheça-se, contudo, que qualquer definição que não inclua uma alusão concreta ao MPLA nunca será aprovada.
Até lá, os angolanos continuarão sujeitos à lavagem do cérebro de modo a que julguem que António Agostinho Neto foi o único angolano a dar um contributo na luta armada contra o colonialismo português e para a conquista da independência nacional.
O dia 17 de Setembro, instituído feriado nacional em 1980 pela então Assembleia do Povo, um ano após o seu falecimento, em 10 de Setembro de 1979 na antiga União das Republicas Socialistas Soviéticas, deve-se, segundo a cartilha do MPLA, ao reconhecimento do seu empenho na libertação de Angola, em particular, e do continente africano em geral, sendo que foi com Agostinho Neto que nasceu a… Angolanidade. Com alguma habilidade ainda vamos ver referências ao contributo para a libertação da Europa e, quiçá, ao nascimento do europeísmo.
Fruto da entrega do pai da Angolanidade à causa libertadora dos povos, o Zimbabué e a Namíbia ascenderam igualmente à independência, assim como foi ele que contribuiu para o fim do Apartheid na África do Sul.
Pelos vistos, desde 1961 e até agora que só existe Agostinho Neto. Se calhar até é verdade. Aliás, bem vistas as coisas, Holden Roberto e Jonas Savimbi, FNLA e UNITA, nunca existiram e são apenas resultado da imaginação de uns tantos lunáticos. Ou se existiram não eram certamente angolanos. Por isso não lhes é aplicável a Angolanidade o que os exclui da remota possibilidade de serem heróis.
Agostinho Neto foi também, segundo uma cartilha herdada do regime de partido único (hoje em termos práticos assim continua), “um esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser antes de mais a expressão viva das aspirações dos oprimidos, arma para a denúncia dos opressores, instrumentos para a reconstrução da nova vida”.
A atribuição do Prémio Lótus, em 1970, pela Conferência dos Escritores afro-asiáticos, Prémio Nacional de Cultura em 1975 e outras distinções são mais um reconhecimento internacional dos seus méritos neste domínio, com trabalhos tais como: Náusea (1952), Quatro Poemas de Agostinho Neto (1957), Com os olhos Secos, edição bilingue português-italiano (1963), Sagrada Esperança (1974), Renúncia Impossível (edição póstuma 1982) e Poesia (edição Póstuma 1998).
Razão tem José Eduardo (Agualusa) quando diz que “uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre”. Mas como foi o pai (eventualmente através de uma gestação in vitro) da Angolanidade, tem assegurado tudo o que só as divindades têm acesso. Ninguém lhe faz sombra.
Continuemos, contudo, a ver a lavagem cerebral que o regime do MPLA insiste em manter, isto porque terá informações dos seus serviços secretos que dizem que somos todos matumbos: “Dotado de um invulgar dinamismo e capacidade de trabalho, Agostinho Neto, até à hora do seu desaparecimento físico, foi incansável na sua participação pessoal para resolução de todos os problemas relacionados com a vida do partido, do povo e do Estado”.
Numa coisa a cartilha do MPLA tem toda a razão e actualidade: “como o marxistas-leninista convicto, Agostinho Neto reafirmou constantemente o papel dirigente do partido, a necessidade da sua estrutura orgânica e o fortalecimento ideológico, garantia segura para a criação e consolidação dos órgãos do poder popular, forma institucional da gestão dos destinos da Nação pelos operários e camponeses”.
Como se vê, os destinos da Nação estão entregues desde 11 de Novembro de 1975 aos operários e camponeses do tipo José Eduardo dos Santos, João Lourenço & Associados.
Em reconhecimento da figura do (suposto único) fundador da Nação angolana, mas certamente pai da Angolanidade, estão erguidas em vários pontos do país estátuas, que simbolizam os seus feitos e legados, marcados pelas suas máximas “De Cabinda ao Cunene um só povo e uma só nação” e “O mais importante é resolver os problemas do povo”.
Pois! Os problemas do povo não foram resolvidos. Mas as estátuas aí estão para serem vistas por um povo que continua a ser gerado com fome, a nascer com fome e a morrer pouco depois com… fome.
Talvez fosse aconselhável instituir um único lema que para sempre marcaria o Dia do Herói Nacional, Pai da Pátria e da Angolanidade. Talvez: Um só partido (MPLA), um só povo (MPLA). É que, de facto, Angola continua a ser (re)construída à imagem e semelhança do MPLA.
A angolanidade começou a se desenvolver nas décadas de 1940 e 1950, quando os angolanos negros começaram a diferenciar-se dos colonos brancos ao abraçar e reivindicar os aspectos da cultura tradicional africana.
A angolanidade adoptou alguns aspectos da negritude. As ideias defendidas pelo movimento negritude foram adaptadas à cultura angolana pelos intelectuais angolanos, como o poeta Viriato da Cruz que, aliás, definiu o conceito de angolanidade em 1948 como um movimento literário com a frase “Vamos Descobrir Angola!”, apoiado pela publicação da revista “A Mensagem”.
Os escritores do movimento, incluindo o verdadeiro (segundo o MPLA) progenitor da Angolanidade, Agostinho Neto, identificaram e destacaram a vibrante cultura dos musseques angolanos, como um contraponto directo à perspectiva do governo colonial de que tais lugares eram miseráveis e cheios de crimes. Embora o movimento literário tenha diminuído em grande parte na década de 1960, a sua influência cultural permaneceu. Na época da Guerra da Independência de Angola, de 1961 a 1974, abraçar a angolanidade e declarar autonomia cultural tornou-se uma forma de empurrar para trás a opressão do colonialismo.